Crédito caro e escasso trava crescimento econômico

Crédito e consumo menores

 

DECO BANCILLON

 

Há quatro anos, o paraense Melquizebec Soares Araújo, então com 38 anos, realizou seu maior sonho: após uma vida de esforço e de trabalho intenso como pedreiro, ele, enfim, deu entrada no financiamento da casa própria. Assumiu, de uma só vez, contas de água, luz, telefone e a prestação mensal de R$ 590 do imóvel, localizado em Águas Lindas de Goiás, no entorno do Distrito Federal. Dar conta do recado não foi fácil. Mas, mesmo quando a situação apertou, Melk, como gosta de ser chamado, não deixou atrasar nem sequer uma parcela do empréstimo.

Só ele sabe o quanto foi difícil sair do aluguel. “Nunca tive vida fácil. Com 6 anos de idade, andava todos os dias de cinco a seis km com meu pai, até o centro de Belém. Vendia de tudo um pouco: balinha, tapioca, doce. Com 12 anos, o prato de comida que eu botava na boca era fruto do meu suor. Mas não reclamo. Só assim a gente aprende a dar valor nas coisas simples que conquista”, diz.

Melq aprendeu desde cedo a não dar o passo maior que a perna. Uma lição que segue à risca até hoje. “Quando eu pego um trabalho, eu aproveito para comprar as coisas que faltam em casa e também reservo um pouco para alguma emergência”, ensina. Quando os tempos são de vacas magras, ele reza a cartilha da austeridade. “Se não consigo serviço, eu evito qualquer tipo de dívida. Porque ninguém sabe o dia de amanhã”, diz.

O sufoco é ainda maior porque nem Melk, nem a esposa, que recentemente ficou desempregada, possuem renda formal. A solução é comprar tudo à vista ou parcelar no carnê, quando a loja oferece essa opção. O duro são os juros cobrados na operação, já que o casal não possui garantias de que conseguirá quitar o débito em dia. Um exemplo foi a máquina de lavar automática, recém adquirida por R$ 1.300. “Dei R$ 400 de entrada e parcelei o restante, em nove prestações de R$ 155”, explica. Ao fim do prazo, Melq pagará, só de encargos financeiros, quase R$ 500. “É juros demais”, constata.

Melk e a esposa sonham com o dia em que terão acesso a itens como cheque e cartão de crédito. “Seria possível parcelar uma compra sem pagar juros”, ele diz. Mas também têm a certeza de que, apesar de prejudicados, não são os únicos a perder dinheiro por causa da baixa oferta de crédito no país. “Os bancos dão bobeira com relação a essas exigências todas”, avalia. “Quem movimenta o país é justamente quem não tem como comprovar renda. É quem mais compra nas lojas, com carnê. É quem mais paga juros”, observa.

O sufoco do casal dá a dimensão da importância do crédito para a melhoria do bem estar das pessoas e ajuda a explicar a dificuldade do país em retomar os rumos do crescimento econômico. “A maior parte das famílias não consegue realizar desejos de consumo apenas com a renda disponível”, explica o economista-chefe da MB Associados, Sergio Vale. “O crédito permite não só que essas pessoas adquiram esses bens, mas estimula um ciclo de expansão do consumo que favorece a todos, ao banco, ao lojista, ao vendedor e ao próprio cliente”, emenda.

 

Fim do boom

 

O Brasil viveu na última década um boom de expansão do crédito que só chegou ao fim a partir do estouro da crise financeira mundial, em 2008. Desde então, os bancos ainda mantêm oferta de dinheiro em alta, mas a um ritmo cada vez menor. O crescimento, que até 2008 era de 30,7%, por exemplo, desacelerou para 11,2%, em 2014. Mas pode piorar. Os analistas calculam que, neste ano, o volume de recursos colocados à disposição de empresas e famílias no país avançará apenas 10,5% — o pior desempenho em uma década. Nos próximos anos, a taxa continuaria caindo, até chegar a 8,8%, em 2019.

Tudo vai depender de como a economia reagirá aos ajustes que serão colocados em prática pela nova equipe econômica, que incluem a redução de gastos públicos e o fim dos repasses de recursos públicos para bancos estatais. “Não há escapatória”, decreta o vice-presidente de Tesouraria do BI&P Indusval & Partners, Gil Faiwichow, “como, nos últimos anos, os bancos públicos foram os entes que mais liberaram dinheiro no país, a menor participação deles vai resultar em restrições ainda maiores para aqueles que precisam de crédito”, diz.

É por isso que mesmo a projeção de 2015 pode ser revisada para baixo, alertam o estrategista-chefe do Banco Mizuho, Luciano Rostagno, acrescentando que as turbulências na economia e a necessidade de ajustes nas contas públicas que poderão resultar em aumento do desemprego, fazendo com que os bancos se tornem ainda mais cautelosos. “A perspectiva é de ainda mais restrição ao crédito do que já temos visto”, avalia.

O Banco Central (BC), por sua vez, projeta em 12% o avanço da oferta de dinheiro neste ano. Para isso, aposta na retomada do apetite dos bancos privados, que reduziram a concessão de empréstimos por temer uma nova onda de calote. Mas são poucos os que mantêm o otimismo. Ao Correio, o presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco, optou por traçar um quadro de cautela para este ano. “O crédito é um multiplicador do PIB (Produto Interno Bruto). Então, a evolução (da oferta de recursos) dependerá muito de como se comportará a atividade econômica em 2015”, observa.

Coordenador de Economia Aplicada do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas (FGV), Armando Castelar Pinheiro atribui a menor oferta de recursos à fraqueza da economia. Diante da estagnação do PIB, os trabalhadores passaram a receber reajustes salariais cada vez menores. Por sua vez, a escalada da inflação passou a pressionar cada vez mais a renda das famílias. “Nós tivemos um ciclo de 10 anos em que a renda das famílias subiu sem parar”, diz. Agora será o contrário. “Os ajustes que serão colocados em prática vão resultar em queda da renda, o que não ocorre desde 2003”, relembra. A diferença entre os dois períodos, observa Castelar é que, naquela época, endividamento das famílias não era tão elevado quanto hoje.

 

Aperto

 

Nunca antes o brasileiro esteve tão endividado. Se forem considerados apenas os compromissos com o banco, os débitos já corroem praticamente metade do orçamento familiar. O último dado divulgado pelo BC, relativo a setembro do ano passado, revela que o endividamento chega a 45,88% da renda acumulada em 12 meses. Em 2005, essa relação era menos da metade do que é hoje, de 21,47%.

Com a renda no limite, muitas famílias deixarão de consumir, alerta a economista-chefe da Rosenberg Associados, Thaís Marzola Zara. “Tudo leva a crer que teremos anos difíceis para o consumo”, diz. “Como a gente tem o mercado de trabalho piorando e a oferta de crédito mais fraca, a perspectiva é de o consumo das famílias vá encolher”, decreta.

Para piorar, quem assumir novas dívidas pagará bem mais caro para quitar os débitos, avalia o economista Vagner Alves, da Franklin Templeton Investments. “O serviço da dívida, que é quanto o consumidor paga de juros para financiar o débito, piorou bastante nos últimos anos”, diz. “O que preocupa é que, além de pagar mais caro para rolar essa dívida, o consumidor deverá sentir um aperto ainda maior no bolso, já que é provável que haja crescimento bem menor da renda nos próximos anos”, alerta.

O aperto na renda tende a ser grande também por conta da alta de juros, já que o Banco Central iniciou um novo ciclo de elevação na taxa Selic. Em um ano, a taxa subiu de 7,25% ao ano para 11,75%. Mas, a que tudo indica, os juros seguirão em alta até março deste ano, quando chegarão a 12,5% — o maior patamar desde julho de 2011. Mesmo após a reversão desse processo de aperto monetário, a partir de 2016, o custo financeiro no país ainda será bastante elevado. As apostas dos analistas é que a taxa Selic ficará acima de 9,25% até o fim de 2019. Bem acima, portanto, do piso histórico da taxa, justamente os 7,25% alcançados durante seis meses, no primeiro mandato da presidente Dilma.

Não por acaso, 2014 deverá ter sido o último ano em que a inadimplência caiu na comparação com o exercício anterior. Os analistas, quase todos, esperam para este ano que as taxas subam e estacionem em patamar elevado até o fim do segundo mandado da presidente Dilma Rousseff.

No meio desse cenário de aperto, Melquizebec é enfático: em temos de incertezas, melhor do que satisfazer um desejo de consumo é deitar a cabeça no travesseiro e poder dormir tranquilo, tendo a certeza de que não terá um cobrador à porta de casa no dia seguinte. “Tem que ser pés no chão. Não adianta fazer mais dívida se a situação não permite exageros”. Melk sonhava trocar de carro. Mas pode ter de adiar o desejo, caso a situação não melhore. “Eu tenho um Kadet 94 e pretendia trocá-lo por um modelo zero quilômetro. Mas, se Deus não me permitir, não tem problema. Me contento com um usado mesmo, mas um pouco melhor do que eu tenho hoje”. “Um passo de cada vez”, ensina.

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